Quando crises viram tragédia silenciosa: autismo, agressividade e falta de preparo nas escolas

Autismo nas escolas

Imagine uma sala de aula onde dois, três ou quatro estudantes têm autismo — e nenhum professor recebeu treinamento ou orientação adequada para lidar com crises de agressividade. Ou então: uma escola não dispõe de um protocolo seguro para intervir quando um aluno autista entra em colapso, passa a gritar, agredir colegas ou professores, ou se machucar. Essa é a realidade de muitas instituições de ensino no Brasil revelada pelo portal G1, mesmo com quase 900 mil estudantes autistas já matriculados em salas regulares. a maioria das escolas ainda não possui um protocolo seguro para lidar com episódios de agressividade.

O problema está longe de ser apenas estatístico: ele revela uma enorme lacuna entre a promessa da inclusão e a prática diária nas escolas.

Autismo em sala comum: um número que exige atenção

Nos últimos anos, a presença de alunos autistas em classes regulares aumentou significativamente. Muitos deles podem acompanhar boa parte das atividades — mas também podem apresentar crises, surtos ou comportamentos desafiadores, com variações de intensidade. Sem um planejamento pedagógico adaptado e sem preparo emocional dos professores, essas situações podem se tornar perigosas para todos: o próprio aluno, os colegas e quem tenta intervir.

Apesar disso, a maioria das escolas ainda não tem um protocolo seguro ou sistematizado para lidar com episódios agressivos. Ou seja: cada crise é enfrentada “no improviso”. E muitas vezes, isso pode causar danos físicos, psicológicos ou até legais.

Por que esse vácuo existe?

1. Falta de formação especializada

Professores e funcionários raramente recebem formação específica em autismo, neurodiversidade ou manejo de crises comportamentais — e quando recebem, muitas vezes é superficial ou genérico. Sem habilidades específicas, é difícil agir de forma preventiva ou segura num momento de crise.

2. Ausência de protocolos claros

Protocolos são “roteiros” com passos seguros para situações de risco: saber quando intervir, como acalmar, como proteger, como envolver família ou serviço especializado. Mas na maioria das escolas, esses roteiros simplesmente não existem. Isso deixa a resposta muito dependente da experiência individual de cada educador.

3. Recursos insuficientes

Faltam psicólogos, pedagogos especializados, salas de apoio isoladas (em casos extremos), materiais adaptados e, sobretudo, tempo para que a escola elabore políticas internas de suporte.

4. Estigma e desinformação

Ainda há visões equivocadas de que comportamento agressivo “é problema de disciplina”, “faz parte da birra” ou “é culpa do aluno”. Isso dificulta que sintomas de crise — muitas vezes desencadeados por sobrecarga sensorial, ansiedade ou frustrações — sejam tratados como exigindo atendimento especializado.

Quando uma crise “explode”

Imagine que um aluno autista entre em surto. Ele pode:

  • Gritar, chorar ou berrar de forma intensa

  • Agredir fisicamente colegas, professores ou até a si mesmo

  • Fugir da sala ou do prédio

  • Bater móveis, arremessar objetos

  • Ficar muito agitado ou muito abatido

Se quem está ali não sabe como agir, acaba havendo risco real — de ferimentos, desgastes emocionais, interrupções das aulas ou até processos legais.

Algumas escolas tentam remediar com “isolamento forçado”, segurar o aluno no braço, gritar “senta no canto”, etc. Mas sem preparo, essas intervenções podem piorar a situação, causar trauma ou escalar o conflito.

Como poderia ser: um protocolo seguro de verdade

Um protocolo eficaz precisa ser pensado com cuidado e envolver vários níveis:

  1. Prevenção e preparo

    • Formação continuada para professores, coordenação e funcionários.

    • Mapeamento dos alunos que podem apresentar crise comportamental.

    • Planos de ação individualizados, com gatilhos identificados e estratégias de suporte emocional.

    • Ambientes adaptados (menos estímulos sensoriais, refúgios calmos).

  2. Detecção precoce

    • Sinais de alerta bem estabelecidos.

    • Monitoramento constante do estado emocional e sensorial dos alunos.

  3. Intervenção segura

    • Técnicas de desescalada (voz calma, aproximação gradual, oferta de alternativas).

    • Uso de profissionais qualificados (psicólogos, terapeutas).

    • Isolamento temporário controlado (sala de apoio, não “punição”).

  4. Apoio pós-crise

    • Escuta ativa com o aluno após a crise — entender o que disparou, como se sentiu.

    • Envolvimento da família e, se necessário, encaminhamento para assistência externa (terapia, acompanhamento).

    • Registro e análise do episódio para aprimorar o protocolo.

  5. Cultura escolar inclusiva

    • Disseminar conhecimentos sobre autismo e empatia entre todos (professores, alunos, pais).

    • Promover atividades que fortaleçam o vínculo, reduzam preconceitos e valorizem a diferença.

    • Garantir que a escola tenha uma política clara de inclusão, com recursos dedicados.

Por que isso importa — para todos

Para o aluno autista

Ele deve estar em ambiente seguro, com possibilidade de aprender, brincar e socializar sem sentir que está sempre sob risco. A crise não pode ser perigosíssima para ele mesmo.

Para os colegas

Eles merecem frequentar a escola sem insegurança, verem seus direitos respeitados e entenderem a diversidade. Saber que há um protocolo pode reduzir o temor de que “vai me pegar no meio da confusão”.

Para professores e funcionários

Eles precisam de respaldo profissional, suporte emocional e regras claras. Sem isso, acabam tomando decisões precipitadas ou sofrendo com culpa, estresse e desgaste.

Para a sociedade

Uma escola que diz que é inclusiva, mas ignora o preparo necessário, cria problemas reais — exclusão na prática, prejuízo ao aprendizado, sensação de que “inclusão não funciona”. Isso mina a confiança no sistema educacional.

Desafios e caminhos

Esse cenário não se mudará da noite para o dia. É preciso:

  • Investimento público: para formar professores e disponibilizar profissionais especializados em todas as escolas.

  • Políticas educacionais que exijam, fiscalizem e acompanhem a implementação de protocolos.

  • Parcerias com especialistas: psicólogos, terapeutas, ONGs de autismo.

  • Participação da comunidade escolar: pais, alunos e professores precisam estar envolvidos na construção dessas políticas.

  • Monitoramento e avaliação constantes, para ajustar o que não funciona.

Os desafios são grandes, mas há caminhos possíveis: mais investimento público, políticas educacionais específicas, parcerias com especialistas e envolvimento da comunidade escolar em todo o processo. Monitorar e avaliar constantemente as estratégias também é essencial para que a inclusão seja efetiva.

Dizer que “a inclusão é um princípio constitucional” não basta se, na prática, alunos autistas enfrentam crises em escolas sem qualquer plano estruturado para lidar com elas. Como mostrou a reportagem do G1, a realidade de hoje ainda expõe fragilidades graves. A mudança depende de ações concretas: treinar, planejar, dialogar e adaptar. É um desafio coletivo e urgente.

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