Diagnóstico precoce do autismo no Brasil: desafios, caminhos e o papel da psicanálise

Diagnóstico precoce do autismo no Brasil

O Censo 2022 estima que 2,4 milhões de pessoas no Brasil tenham diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA), o equivalente a cerca de 1,2% da população. A prevalência é maior nas faixas etárias mais jovens, o que reforça a importância do diagnóstico precoce do autismo, articulado a políticas públicas e a uma clínica capaz de considerar tanto o cérebro quanto a subjetividade.

Mais do que “fechar um laudo”, detectar cedo o autismo significa abrir possibilidades de cuidado, inclusão e construção de projetos de vida singulares.

Por que o diagnóstico precoce do autismo é decisivo?

Estudos brasileiros mostram que os sinais de TEA podem ser identificados ainda nos primeiros anos de vida, e que intervenções iniciadas cedo melhoram comunicação, interação social e autonomia. No entanto, o diagnóstico muitas vezes chega tarde, após uma longa trajetória de estranhamentos na família e na escola.

Entre os principais benefícios do diagnóstico precoce estão:

  • Acesso antecipado a terapias e serviços especializados (fonoaudiologia, psicologia, terapia ocupacional, apoio educacional).

  • Planejamento escolar inclusivo, evitando rótulos como “malcriado”, “preguiçoso” ou “sem limites”.

  • Apoio à família, que deixa de circular apenas entre culpas e hipóteses pessoais para dialogar com profissionais, grupos e redes.

  • Prevenção de sofrimento psíquico adicional, como ansiedade e depressão decorrentes de anos de incompreensão.

Do ponto de vista psicanalítico, o foco não é apenas reconhecer sinais comportamentais, mas compreender como a criança se coloca no laço com o outro, como responde ao olhar, à voz e às demandas do mundo.

Desafios do diagnóstico precoce no Brasil

Apesar dos avanços nas políticas públicas, o diagnóstico precoce do autismo no Brasil enfrenta obstáculos importantes:

  • Desigualdade regional de acesso: serviços especializados concentram-se em grandes centros urbanos, enquanto muitas famílias dependem apenas da atenção básica

  • Formação insuficiente de profissionais da atenção primária para rastrear sinais, acolher a família e encaminhar de forma adequada.

  • Fila e fragmentação na rede de cuidados, com dificuldade de articulação entre Unidade Básica de Saúde, CAPSij, escolas e serviços de reabilitação.

  • Estigma e desinformação, que ainda levam muitos responsáveis a adiar a busca por ajuda, esperando que “o tempo resolva”.

  • Diagnóstico tardio em meninas e em pessoas com maior suporte intelectual, frequentemente lidas apenas como “tímidas” ou “excêntricas”.

A literatura aponta que, mesmo quando a família percebe cedo que “há algo diferente”, o caminho até um diagnóstico claro é longo, marcado por desencontros entre relatos subjetivos, protocolos padronizados e serviços sobrecarregados.

Caminhos em construção: SUS, políticas públicas e redes de cuidado

Nos últimos anos, o Ministério da Saúde publicou documentos que organizam a linha de cuidado para o TEA no SUS, reforçando o papel da Atenção Primária na vigilância do desenvolvimento, no rastreio, no encaminhamento e na coordenação do cuidado.

Essas diretrizes:

  • Defendem o acesso universal e integral às pessoas com TEA e suas famílias.

  • Recomendam rastreio sistemático do desenvolvimento nos primeiros anos de vida.

  • Enfatizam o trabalho de equipes multiprofissionais, articulando dimensões biológicas, psicológicas, sociais e educacionais.

Ao mesmo tempo, pesquisas mostram lacunas entre o que está escrito nas políticas e o que de fato chega ao cotidiano das famílias — especialmente nas regiões mais vulneráveis. Daí a importância de fortalecer tanto a formação dos profissionais quanto o diálogo com as comunidades, organizações de familiares e movimentos de pessoas autistas.

O papel da psicanálise no percurso diagnóstico

A psicanálise, longe de se opor ao diagnóstico médico, pode qualificar o percurso diagnóstico, sobretudo em contextos onde há pressa por respostas fechadas.

Pesquisas brasileiras destacam que a psicanálise:

  • Propõe um olhar que considera o sujeito autista em sua singularidade, e não apenas como portador de um “transtorno neurológico”.

  • Oferece uma escuta do sofrimento da família, reconhecendo angústias, fantasias e culpas que acompanham o momento do diagnóstico.

  • Defende a ideia de “autismos” no plural, considerando diferentes modos de estar no mundo e de se relacionar.

Na prática, a clínica psicanalítica com autismo não se limita a “treinar habilidades”, mas busca construir um espaço em que a criança (ou adulto) possa inventar formas próprias de laço e expressão. Para o diagnóstico precoce, isso significa:

  • Não reduzir o encontro clínico a checklists de sintomas.

  • Acolher a palavra dos pais, professores e cuidadores, entendendo que seu discurso também revela o modo como a criança é significada.

  • Trabalhar em articulação com outros saberes (neuropediatria, fonoaudiologia, psicopedagogia) sem perder de vista o sujeito.

  • Como profissionais e famílias podem agir na prática

    Para profissionais de saúde e educação

    • Incluir rotineiramente perguntas sobre desenvolvimento, interação e comunicação nas consultas e reuniões escolares.

    • Conhecer e utilizar instrumentos de rastreio disponíveis, sem transformá-los em única verdade.

    • Encaminhar para serviços especializados ao menor sinal de atraso persistente, mantendo a família informada sobre o percurso.

    Para famílias

    • Levar a sério percepções como “meu filho não olha quando chamo”, “fala pouco ou nada”, “prefere objetos a pessoas”.

    • Buscar avaliação em serviços de referência do SUS ou rede privada, questionando, pedindo explicações e segundas opiniões quando necessário.

    • Procurar espaços de apoio (grupos, associações, redes) e, quando possível, acompanhamento psicológico para elaborar o impacto do diagnóstico.

Conclusão

O diagnóstico precoce do autismo no Brasil é ao mesmo tempo uma urgência de saúde pública e uma delicada experiência subjetiva. As políticas de linha de cuidado e reabilitação apontam caminhos importantes, mas ainda insuficientes se não vierem acompanhadas de investimento real na rede, formação continuada e escuta qualificada das famílias.

Nesse cenário, a psicanálise pode contribuir ao recolocar no centro da cena aquilo que muitas vezes se perde entre protocolos: um sujeito que, autista, constrói à sua maneira vínculos, desejos e possibilidades de vida.

Fontes (para aprofundamento)

  1. Estudo sobre fatores associados ao diagnóstico precoce de autismo em serviços do SUS no Brasil (2013–2019).SciELO SP

  2. Artigos e revisões sobre diagnóstico precoce do TEA e desafios na rede de atenção à saúde no Brasil.Recima21+1

  3. Censo Demográfico 2022 – Dados do IBGE e análises sobre prevalência de autismo no Brasil.Agência de Notícias – IBGE+2Drauzio Varella+2

  4. Diretrizes e Linha de Cuidado para pessoas com TEA no SUS – Ministério da Saúde e Fiocruz.inclusivenews.com.br+4gov.br+4Biblioteca Virtual em Saúde MS+4

  5. Produções brasileiras sobre psicanálise e autismo, incluindo revisões de literatura e discussões conceituais.SciELO+3Revistas USP+3Pepsic+3

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *