“… a criança autista não teve um defeito na sua construção, mas um incidente na sua constituição” (F.Dolto)
Quando falamos de autismo infantil, nos deparamos com um universo cheio de questionamentos e poucas certezas definitivas. O autismo permanece um tema complexo e desafiador, tanto para a ciência quanto para a psicanálise. Embora muito se avance nas pesquisas biológicas e genéticas, a compreensão do autismo sob o olhar psicanalítico ainda provoca reflexões profundas.
Segundo o texto “Autismo: Uma Abordagem Psicanalítica”, publicado no Caderno Psicanálise do CPRJ (2007), a psicanálise oferece uma visão que vai além de classificações médicas e diagnósticos comportamentais. Ela propõe entender o autismo a partir da história emocional da criança, das experiências corporais e da relação precoce com os cuidadores, principalmente a mãe.
O texto nos lembra que o termo autismo significa, essencialmente, “viver em termos do próprio eu (self)”, e que a primeira psicanalista a tratar crianças com essas características foi Melanie Klein, ainda nos anos 1930, quando a condição era chamada de esquizofrenia infantil.
O diagnóstico de autismo traz um forte impacto emocional para os pais. Muitas vezes, surgem sentimentos de “negação quanto ao diagnóstico, culpa, frustração e tristeza”, como destaca o texto. Nesse momento, o apoio psicoterapêutico é fundamental para ajudar a família a compreender que seu filho “não é pior que as outras crianças, apenas diferente”.
Além disso, o ambiente familiar tem grande influência sobre a criança. Maud Mannoni (1984) observa que a criança autista é muitas vezes classificada como “retardada”, “doente” ou “doente mental”, sendo prisioneira da fala dos outros, um “ser falado, porém não falante”.
O psicanalista Bruno Bettelheim (1967) trouxe uma abordagem que marcou época. Para ele, o autismo infantil não era uma condição orgânica, mas o resultado de um bloqueio do desenvolvimento provocado por uma realidade externa aversiva. Ele destacou que “o mundo-mãe pode gerar na criança autista indiferença ou raiva, trazendo como consequência o enfraquecimento do impulso para observar e reagir ao meio-ambiente”.
Bettelheim via o autismo como um estado emocional de retraimento, uma defesa contra um ambiente percebido como hostil ou não acolhedor.
D.W. Winnicott, outro importante nome citado, traz uma visão provocadora ao afirmar que “o problema do autismo é fundamentalmente um problema de desenvolvimento emocional, o autismo não é uma doença”.
Para Winnicott, o que leva ao autismo são falhas nas etapas iniciais do desenvolvimento emocional da criança, especialmente na interação com a mãe. A falta de contenção emocional pode gerar na criança a vivência de uma perda devastadora, algo que ele descreve como “a sensação de cair sem fim”, uma experiência de separação traumática.
Outro grande foco do texto está na relação entre o corpo e o desenvolvimento psíquico. Frances Tustin é uma das principais referências nesse aspecto. Ela entende o autismo como um estado de defesa sensorial. Para Tustin, a criança autista vive “centrada nas sensações do seu próprio corpo”, muitas vezes percebendo o mundo exterior como uma extensão de si mesma.
Essa relação intensa com o próprio corpo pode ser uma resposta a falhas precoces na relação com a mãe. Quando essa relação é interrompida de forma abrupta, a criança pode regredir a um estado de “fortaleza sensorial”, evitando o contato com o mundo externo.
Já Margareth Mahler reforça que, no início da vida, existe um período de “autismo normal”, uma fase transitória que, em condições adequadas, é superada pela criança no processo de separação e individuação. Quando isso não ocorre, o desenvolvimento emocional fica comprometido.
O artigo também destaca a importância do corpo como base do desenvolvimento psíquico. Freud (1914) já dizia que “a pele ensinaria o Ego a pensar”, ou seja, as experiências corporais são fundamentais na construção do eu.
Esther Bick, ao falar da “pele psicológica”, reforça que o bebê precisa sentir que suas partes corporais estão unidas e contidas. Se essa experiência falha, a criança pode desenvolver uma “segunda pele”, como uma defesa contra a fragmentação emocional.
Da mesma forma, Didier Anzieu (1980) introduziu o conceito dos “envelopes corporais”, que representam as primeiras barreiras protetoras entre o mundo interno e o externo. Segundo ele, “todo traumatismo ocorrido antes da constituição do envelope psíquico se inscreve no corpo e não no psiquismo”.
Françoise Dolto trouxe importantes contribuições ao observar casos de “autismo experimental”, como em bebês que passaram longos períodos em incubadoras, privados de contato sensorial e afetivo. Dolto acredita que a experiência de separação precoce, sem aviso ou preparo emocional, pode gerar na criança a vivência de uma “morte parcial”, levando ao retraimento autístico.
Ela ressalta: “A criança autista não teve um defeito na construção, mas teve um incidente na sua constituição”.
A intervenção psicanalítica, segundo Dolto, passa pela reconstrução da história emocional da criança. Ela sugere que as mães revisitem, por meio de fotografias e memórias, o momento exato em que a comunicação com o filho foi rompida. Muitas vezes, a identificação de eventos como “a morte de alguém importante, uma internação hospitalar ou uma separação abrupta” pode ajudar a estabelecer uma nova conexão afetiva com a criança.
Dolto recomenda que os pais conversem com os filhos sobre esses eventos, com frases como: “A mamãe esteve ausente por alguns dias, sem lhe avisar. Você chorou horas sem parar”.
O texto finaliza reforçando a importância da psicanálise na escuta da criança autista e no resgate de sua subjetividade. Embora muitas perguntas ainda permaneçam sem resposta, uma certeza é destacada: “o autismo só aparece com o surgimento da vida”, com a entrada de ar nos pulmões e, consequentemente, com o início da vida psíquica.
O convite que o texto nos deixa é este: olhar para a criança autista “não pelo que ela não tem, mas pelo que ela tem e pelo que a psicanálise pode, por ela, fazer”.
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